sábado, janeiro 31, 2009

És tão bela!


A tarde já ia sensivelmente a mais de meio e já estava atrasada. Chovia torrencialmente e eu segurava, com dificuldade, o meu chapéu-de-chuva encarnado. Uma das varetas já furou o pano, o que fazia com que o meu cabelo fosse ficando cheio daquelas gotinhas de água que me deliciam, penduradas nos galhos vazios da minha tília. Bem digo eu que não sou mais do que uma árvore. Quando olhava de soslaio para o meu cabelo, as gotas de água faziam-me sorrir e ficar cada vez mais envolvida pelo ambiente circundante. Em mim, tudo se entranhava: a chuva, as pessoas e o ar cinzento da cidade.
- Menina, diga-me se está a chover! Foi assim que o velhote se me dirigiu do outro lado da rua, na esquina das arcadas da Praça Rodrigues Lobo.
-Claro que está! O senhor não vê?
- Eu sei que está! Mas, não chove em todo o lado… Decididamente este velho era maluco ou seriam estas saídas prenúncios de Alzheimer? Pensei.
Continuei a andar e o velho foi-me no encalço.
- Espere, um pouco menina! Para quê tanta pressa? A vida são dois dias!
Parei, olhei para trás e quase que o meu chapéu se embrulhava no dele.
- Se acha que a ofendi, peço-lhe desculpa.
- Não, não ofendeu nada! E aquele tradicional “desculpe, que tenho pressa” que em situações idênticas nos ocorre, o que não era o meu caso, eu tinha mesmo pressa, foi trocado por um vislumbre de paciência e curiosidade.
- És tão bonita! Chamas-te Fernanda, não é?
- Não. Sou NOKITAS!
- És tão bonita! Não se cansava o velho de repetir.
- Sabes, uma coisa? Sou viúvo e até pode ser que nos encontremos. Moro aqui perto.
- Muito bem. Eu vou visitá-lo um dia destes. Agora tenho pressa! O “ tenho pressa” acabou mesmo por sair. O velho já quase que estava debaixo do meu chapéu.
- Para quê tanta pressa, menina! A voz dele era mais um suspiro que se diluiu na veemência com que continuava a apregoar o “ És tão bonita!”, à medida que me afastava. Não voltei a olhar para trás. Segui determinada o meu destino, não ligando, sequer, ao desconforto que me causava a água que me entrava, também, pela sola das botas, descolada.
Não voltei a pensar no assunto, senão, à noite, à lareira, com a Ana sentada ao meu lado.
- Mãe, é um velho tarado!
- Pode ser! Mas, o que me intriga é a situação em si. Um velho, ainda bem parecido, com olhos de uma liquidez perfeita. Azuis! E perdidos…E depois a veemência das palavras. A chuva, o meu cabelo com pérolas iguais às que se formam nos galhos da tília, os meus pés encharcados e o ar sombrio e cinzento da cidade. E, no meio disto tudo, és tão bonita! Há alturas na vida em que tudo faz sentido. Os velhos que se agarram desesperadamente à vida, a chuva e água que nos entra pelas solas das botas, descoladas, o brilho das pedras da calçada e as tábuas escorregadias da ponte que me conduzem para perto das portas da cidade. Nem uma vez olhei para trás para ver como ficou o velho. Tudo acaba. Até o que nem sequer começou!

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